Nanananananananananananana: a música da Gala na briga da Fifa com a Uefa
Quando faz de Freed From Desire a música oficial da Copa do Mundo de Clubes, a Fifa busca toma-la da Europa para si numa ofensiva soft power na guerra simbólica contra a Uefa.
Todo mundo que gosta de música já passou pela experiência: um comercial, videogame ou qualquer coisa assim de repente usa a tua música preferida. E, de repente, por mais que tu lutes, ela não é mais a TUA música. Ela é a música daquela abominação lá que comprou os direitos. E a Fifa está lutando para fazer exatamente isso com a Uefa. Felizmente, no caso, a tal música não é lá aquelas coisas mesmo.
Sim, estamos falando de Freed From Desire, da Gala, aquela do nanananananananananananana (eu contei os “na”, espero que esteja certo). Toca o tempo todo na Copa do Mundo de Clubes: nos intervalos, nas chamadas, nos estádios, sei lá mais onde. Dá saudade do OOOOOEEEEEAAAAAA da Copa de 2014, já está meio irritante, mas beleza.
A música foi lançada em 1996, embalou um monte de pista de dança fuleira (com ou sem banho de espuma), foi hit em um monte de lugar, provavelmente Gala foi no Faustão, fez meia dúzia de show-playback em feira agropecuária no Brasil todo e foi para aquele limbo da nostalgia fuleira ocasionalmente irônica. Até que em 2011 chegou à cultura europeia de estádio, inicialmente por meio da interpolinização entre futebol e cultura de rave: torcedores do Bohemian (time da primeira divisão da Irlanda) começaram a cantar “the Bohs have got no money, we've got a bag of Es" (“os Bohs não têm dinheiro, temos um saquinho de ecstasy”). Estavam abertas as comportas.
Ao longo dos anos, várias torcidas criaram suas próprias versões, adaptando as letras. Em 2016 o negócio embalou mesmo: um torcedor do Wigan (time da região de Manchester que joga no equivalente à série C do Inglesão) botou no youtube a versão que fez, um cara chamado DJ Kenno (não o do Fluminense) gravou e lançou oficialmente essa versão, galera das Irlandas, Gales, Inglaterra e França fizeram as suas, cada vez mais gente.
Durante esse tempo todo, era basicamente coisa da Europa. Combina bem com a música, um dos mais clássicos exemplos do que chamamos de Eurodance, incluindo aí todas as virtudes, defeitos e preconceitos contra o estilo. E vários DJs de estádio, sempre em competições europeias de clubes e seleções saíram tocando a música original da Gala, inclusive nas comemorações de títulos. Muito que bem.
Chegamos a 2025 e à Copa do Mundo de Clubes, competição da Fifa, que tem diversas pendengas políticas com a Uefa. Uefa e times e seleções europeias, de seu lado, cada vez se esforçam menos para disfarçar o horror a reconhecer a existência de futebol em outros lugares do mundo, exceto como locais de exportação de jogadores, cada vez mais jovens e menos “contaminados” com os hábitos esportivos de seus países de origem. E aí aparece uma competição em que clubes europeus precisam jogar várias vezes contra países do RESTO DO MUNDO? Como assim? Já não bastava a Copa do Mundo de seleções?
Nesse contexto, em nome do sucesso da competição, a Fifa precisa atrair a simpatia e os corações dos torcedores desses times, muitos dos quais veem a Copa como um estorvo, mais um compromisso de pouco valor e que atrapalha as poucas datas de um calendário já atulhado. Mais ou menos como deveríamos tratar a Copa do Brasil. Além dos prêmios generosos em dinheiro para as vitórias, passagens de fase e título, chegamos então à abordagem sentimental e todo o ponto desse texto: quando faz de Freed From Desire a música oficial da Copa do Mundo de Clubes, a Fifa busca toma-la para si e, junto com ela, todas as ligações esportivas e sentimentais que ela aciona em torcedores europeus. Mais ou menos como aquele comercial de banco com cenas comoventes.
Deve funcionar, sei lá. Por mim a Copa está excelente e não vou torcer para ninguém em briga entre Fifa e Uefa nem me descabelar por esse tipo de roubo a europeu. Mas é gostoso ver essa manobra de soft power numa guerra simbólica usando uma música que não me faz grande diferença.